✷ ficante fixo✷
tenho a sorte de ter amigos totalmente diferentes entre si. e por isso aprendo muito. muitas vezes coisas que sequer gostaria de aprender, mas lá estão eles esfregando em minha cara o novo. o lado bom disso é que acabo sendo naturalmente uma pessoa mais mente aberta.
sei lá porque gente adora olhar na minha cara e pensar eis aqui uma mulher que eu posso falar tudo sem filtros. e as pessoas falam. nem precisam ser minhas amigas não, gente que nem tenho intimidade costuma me falar de suas intimidades abertamente, como se eu fosse sua última esperança de serem compreendidas.
já ouvi dizer que existem essas pessoas, tipo eu, que outras pessoas confiam facilmente. ou elas talvez olhem pra mim e pensem eis aí uma pessoa mais cagada da cabeça do que eu e começam a relatar seus dramas sem nenhum pudor.
(de coisas íntimas sobre c*, desejos malucos, traições… eu sou um repositório de histórias contadas para mim)
pois bem. eis que dessa vez estou ouvindo o desabafo de uma amiga (que super autorizou eu escrever sobre isso e até ficou animada em se transformar em personagem dessa história)…
agora o desabafo vai parecer nada comparado as coisas estranhas que falaram para mim…
mas enfim, conversa vai e conversa vem. ou melhor, o monólogo dela simplesmente foi e eu ouvi. ela estava fazendo muito mistério. vou dar o contexto. ela está saindo com um cara, há meses, e eles estavam ficando. aí ela resolveu me contar que eles tomaram uma decisão. fiz as contas. eles estavam ficando há mais de 5 meses, vinham tendo várias dr's, ele queria uma coisa monogâmica… soltei: ah, vocês estão namorando! ela riu, incrédula, como se eu estivesse falando uma idiotice. ou pior, como se eu fosse uma velha careta.
não, amiga, claro que não! ela rebateu. mas agora somos ficantes fixos!
ok, então vocês são monogâmicos, — não podem ficar com mais ninguém, nem ter nenhum aplicativo de namoro — vocês se veem quase todos os dias, tem dr com constância e estão juntos há cinco meses… e não é um namoro?, perguntei e ela continuou séria, fazendo uma expressão de sim, e daí?
isso! não somos namorados, somos ficantes fixos! meu deus, ela insistia nessa coisa.
entendi. mas acho que não importa muito o nome que você dá, confessei. se a gênese é a mesma…
ela me olhou como se eu tivesse descoberto o ouro.
sério? você acha que isso se configura em um tipo de namoro? — ela estava me perguntando de verdade.
✷ relações modernas ✷
não sou nenhuma especialista em relacionamento, a real é que tenho uma curiosidade geral e quase antropológica sobre o assunto. mas será que termos como namoro e casamento começaram a ser evitados por que possuem uma carga histórica muito grande? não queremos cometer os mesmos erros. muitos de nós vimos nossas mães serem abandonadas ou completamente infelizes na relação. queremos outra coisa. mas não sabemos exatamente o quê. talvez a gente queira o novo, sem as partes chatas como, sei lá, se comprometer e ser vulnerável.
estamos em um momento novo da história. muita coisa aconteceu. divórcios já não são tanto um tabu para a maioria. estamos em uma época em que queremos subverter as coisas, criar novos meios. mas, também, estamos em uma época do “não estamos namorando, mas a gente se vê todos os dias, a gente debate o nome do nosso futuro filho, não podemos ficar com mais ninguém e nem desejar outras pessoas” virou uma coisa normal. queremos estar com o outro, mas evitar ao máximo se ferir. emocionalmente envolvidos, espiritualmente fodidos, psicologicamente investidos, mas, no geral? solteiros!
as relações modernas são configuradas por duas pessoas com medo. além do medo, também há hoje um grande buffet de pessoas disponíveis nos aplicativos: você escolhe o que quer, finge que tá tudo incluso e torce para não passar mal depois. nossas emoções estão meio caóticas: queremos benefícios, lealdade, ausência de rótulos, exclusividade, vulnerabilidade com moderação — estamos tentando buscar coesão nesse mar de estímulos aos quais somos confrontados todos os dias. até porque, hoje você pode estar em casa com seu parceiro e, ainda assim, ter atos que se configuram como traição (um coração no story de uma mulher que você achou bonita, responder o comum “oi, sumida”).
esse combo de opções e medo, provavelmente nos leva a temer a palavra namoro. talvez chamar de namoro quebre o encanto. vire adulto demais, uma espécie de boleto emocional que temos que pagar se queremos ficar limpos. vira expectativa e, por isso mesmo, possível falência.
a real é que estamos tão traumatizados que acreditamos que dar nome às coisas é o primeiro passo para a morte do prazer. como se rotular fosse tipo dizer “te amo” no meio de um orgasmo — pronto, estragou, sua louca.
então a gente inventa novas palavras. novos formatos. novos pactos verbais estranhos tipo: “a gente não está junto, mas também não tá separado, e se um dia você ficar com alguém eu provavelmente vou ter uma crise de ciúmes e dar pro primeiro que aparecer pela frente, mas entendo, afinal somos livres, né?” liberdade com toque de controle passivo-agressivo.
relacionamentos, quando você não sabe o que está fazendo, são praticamente escape room emocionais: você entra achando que vai sair rápido, mas três meses depois está chorando no banheiro porque a pessoa arquivou as fotos que vocês tinham junto no instagram.
mas é claro, estamos tentando. somos uma geração tentando desesperadamente amar sem parecer que estamos entregues. não queremos nos importar. queremos amar sem correr o risco da humilhação. mesmo que estejamos fodidos da cabeça com milhões de ideais e expectativas do que o amor romântico é, preferimos fingir que somos blasê. mas a real é que queremos tanto amar e ser amados, sermos preenchidos, que chamamos de ficante fixo ou qualquer nome que queiramos dar só para não parecer que estamos com o coração na mão do outro.
mas será que isso tudo não é um sintoma de algo maior?
✷ preguiça social ✷
essa matéria da wired fala sobre como estamos começando a perceber que algo está errado no quesito relações. em tradução livre, tem uma frase certeira: “2025 marca o ponto de virada em que as pessoas tentarão passar menos tempo em telas e recuperar conexões presenciais significativas”, graças a deus.
somos a primeira geração a se relacionar o tempo todo. ficamos online, falando com amigos e parceiros 24h. como teríamos energia para a coisa real? vamos lá, nossas personalidades foram moldadas por pornô, sexualidade extremada e conversas na madrugada pelo msn. o quase real virou o normal e acabamos viciados nessa dinâmica, até porque é mais fácil ganhar um block na internet do que na vida. estamos exaustos e traumatizados, não temos psicológico para sermos rejeitados ou para termos as conversas difíceis necessárias para um relacionamento funcionar.
além de todas as feridas que não estão cicatrizadas dentro de nós, tem também a mudança gradual no mundo. passamos por um período extremamente online e perdemos o tato nas conexões reais (agravado pelo período de isolamento da pandemia). agora sentimos um desejo de nos reconectar com os outros, mesmo que esses outros não pareçam tão mais disponíveis quanto antes. o medo está em todo lugar e, ao mesmo tempo que temos um desespero latente da solidão, a gente não sabe mais como dançar junto. temos tanto medo que achamos melhor criar um novo nome para as coisas na tentativa de tirar o peso da humilhação e do fracasso.
✷ novas formas de amar como antídoto? ✷
no livro novas formas de amar, da regina navarro lins, ela fala sobre o que está acontecendo hoje nas nossas percepções sobre o amor. o ideal do amor romântico está se desfazendo, estamos percebendo que essa história de sermos completos pelo amor da nossa vida e de vivermos felizes para sempre é uma falácia. ao constatar isso, vamos entendendo que precisamos encontrar novas formas de nos relacionar. mas a real é que tudo é muito novo, não temos modelo a ser seguido. estamos descobrindo por conta própria. e o novo dá frio na barriga!
esse livro é um respiro porque ele nos faz compreender um pouco mais a nossa geração. nós vimos a falência de muitas coisas. o capitalismo tardio transformou dinâmicas e também o uso exacerbado da internet. se antes o divórcio era algo condenável, agora é mais comum do que um casamento que dure. ideais estão indo pelo ralo. não queremos cometer os mesmos erros dos nossos pais. então precisamos explorar o novo.
será que essas novas formas de amar contemplam os novos nomes? ou é algo mais profundo? porque se a dinâmica é a mesma, mudar o nome não vai magicamente transformar a coisa em algo diferente. se as relações continuam com expectativas, projeções e sentimentos de posse, de que adianta mudar o rótulo? é preciso transformar desde a raiz. e perceber que é justamente nosso medo em sermos realmente vistos que nos afastam da profundidade. queremos amar e ser amados, sim, mas temos medo do que isso realmente significa. ver o outro sem projeções, mas pior ainda, sermos vistas sem projeções, sem o encanto que tanto queremos manter.
✷ fim ✷
não tenho um fim para esse assunto. no geral, ainda estou compreendendo — não estamos todos? — o que esse momento pede de nós. talvez, mergulhar nas relações que já temos, aprofundá-las, seja ideal nessa época de pouca profundidade e distanciamento social. talvez assim a gente encontre as respostas ou até mesmo o que funciona para gente. talvez os nomes que damos as coisas sequer importe mesmo, vai saber! contanto que todo mundo esteja feliz…
no próximo texto, vou falar de desejo.
vamo vendo.
com amor,
camila.